Desenvolver um projeto social na África é como plantar uma semente em um solo árido, sedento de água, como diz Amélia, uma das jovens do projeto Arte sem Fronteiras“aqui temos fome de água, mãe” –as crianças e jovens utilizam a nomenclatura mãepara dirigirem-se às educadoras do sexo feminino e, pai, para o sexo masculino. Assim, também se referem aos padrinhos e madrinhas que financiam a sua alimentação diária–.
A Organização Não Governamental brasileira Fraternidade sem Fronteirasacolhe inúmeras pessoas em situação de vulnerabilidade social, em diferentes lugares. Em Moçambique, experiência que vivencio neste momento, são acolhidas mais de 10 mil crianças, jovens e idosos, que recebem nos centros de acolhimentos uma refeição diária, geralmente sendo a única vez que eles se alimentam no dia. Ainda, são proporcionadas atividades de reforço escolar, cuidados básicos de higiene e saúde, sendo que muitas crianças são órfãs e portadoras de diferentes doenças, como o vírus do HIV, a malária e a tuberculose.
Dentro desta ONG, coordeno desde o ano de 2016 o projeto Arte sem Fronteiras, no intuito de proporcionar a estas crianças e jovens a vivência da arte. Nesta perspectiva, trabalhamos a contextualização histórica da arte e o fazer artístico, além de agregar valores educativos, éticos, a autoestima, a visibilidade social e o exercício da cidadania. Relacionando a minha prática enquanto coordenadora deste projeto nas aldeias com os estudos acadêmicos, iniciei em 2017 o Mestrado em Educação, na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões/Brasil, onde estudo a arte-educação em contextos educativos não formais. Assim, para aprofundar meus conhecimentos sobre a temática, estou realizando um estágio na Faculdade Pedagógica de Moçambique, na cidade de Maputo, na busca por diálogos com os professores que fazem parte do Curso em Artes, assim como nos museus, nos espaços culturais e, especialmente, através do convívio com o povo moçambicano da cidade e nas aldeias.
Aproveitando essa estadia, procuro ampliar o projeto, que possui sua sede em Muzumuia, onde criamos a oficina de Batik –consiste emuma técnica de pintura milenar, onde usa-se cera de abelha quente e tintas para o tingimento do tecido–, na aldeia de Barragem, e construímos um forno para os jovens criarem pequenas peças de escultura e utensílios em cerâmica, como uma moringa de água para as salas de aulas, pratos, copos e panelas.
As experiências são ímpares, pois a convivência com os professores, o contato com as pessoas e o contexto local é algo surpreendente, proporcionando uma mudança de visão de Moçambique, e da África como um todo. Conhecer sobre a formação das tribos, a conquista e a colonização de Portugal, a língua, a vitória do partido FRELINO, que se perpetua no poder até os dias atuais, coloca em contraste um país riquíssimo em ouro, diamante, terras produtivas, gás natural, petróleo e belezas naturais, banhadas pelo Pacifico, com um contexto de pobreza e fome, tanto na zona urbana como rural.
As histórias que escuto aqui não estão nos livros, pois são narradas de uma forma simples e, muitas as vezes, durante uma caminha sobre o solo seco e sob o sol escaldante. Contados pelos avós e bisavós, relatam a escravidão, as injustiças, os massacres, as batalhas sangrentas de pessoas consideradas inferiores aos outros seres humanos e, que de uma certa forma, se reconhecem até hoje como tal. Apesar destas histórias de tantos sofrimentos e dificuldades, o que mais me impressiona nesta experiência é o quanto as pessoas são alegres, talentosos, criativos e gratos pela vida.
Maputo (Moçambique), 11 de outubro de 2018