Nenhuma viagem é igual à outra, mesmo que seja ao mesmo lugar. A primeira viagem começa dentro de nós, no dia que nos preparamos para enfrentar a distância, a solidão, as novas companhias, as novas culturas, um novo espaço educacional, os novos professores e colegas. A terra com cheiro diferente, a chuva tão desejada, o sol intenso, na aldeia o luar mais lindo que já presenciei e um povo quase sempre muito acolhedor e desconfiado, afinal eu sou “mulungu” (pessoa de pele branca).
Dia após dia são novas aprendizagens, em uma visita ao Museu, ao Centro Cultural, ao Forte, à Praça, à Exposição de Arte, ao Mercado Público e à Machamba (lavoras). Visualizo a baobá (árvores de regiões tropicais áridas e semi-áridas), a capulana (tecido usado nas vestimentas) e a xima (comida típica a base de milho). Vejo a herança portuguesa na arquitetura de muitos prédios e conheço um pouco desse país ao andar de “chapa” (transporte utilizado em Moçambique), onde as mães no trabalho com seus filhos amarrados junto ao seu corpo, conheço as periferias urbanas, a praia e o mar.
Portugal e Brasil se faz muito presente em Moçambique, as novelas brasileiras são fonte de inspiração e, de certa forma, ditam algumas tendências de moda e comportamento. A cultura visual está nas paredes, postes e em outdoors de propaganda partidária do atual presidente. Além disso, a musicalidade que é um dos pontos mais fortes desse povo.
Para nós, estrangeiras, a submissão feminina ainda assusta, sendo que a mulher exerce muitos papeis nas atividades de trabalho árduo, além de casos que seus casamentos são acordados quando são muito jovens, e quase sempre impostos pela família, o que lhe tiram o direito de continuar estudando e constituir uma nova família de acordo com suas vontades.
A pobreza continua generalizada e, principalmente, concentrada em zonas rurais, onde a metade da população vivendo abaixo da linha da pobreza. A educação de baixa qualidade é uma preocupação, os níveis de analfabetismo da população jovem e adulta, com idades entre 15-60 anos, se manteve entre os mais altos do mundo, ou seja, 44,9%. Além disso, a malária, o a falta de saneamento e a desnutrição infantil representam a maioria das causas comuns de morte no país, responsável por uma média de 35% da mortalidade infantil e 29% da população geral (UNESCO, 2017).
Em meio dessas vivências, conheci projetos sociais, na capital Maputo, em espaços de educação não formal, que tem como objetivo diminuir as dificuldades enfrentadas por esta população. Projetos estes que estão voltados a promover a dignidade de crianças e jovens em estado de vulnerabilidade social, que podem servir como modelos em outros países, pois visam, sobretudo, a sustentabilidade destes grupos.
Pensar esse povo enquanto nação é um contraste de diversidades de línguas faladas (35 línguas), de religiões, de conquistas e desejos. Com passos lentos, todos caminham em direção a conquistas, às vezes, significa o mínimo para sobreviver. Outros, já ousam sonhar em profissões que os dignificam e, há ainda, aqueles que sonham alcançar um bem coletivo.
Mergulhada neste contexto, quando os meus olhos começam a se acostumar com um cenário de tantos contrastes e pobreza, ainda sim é impossível aceitar a falta do que considero o mínimo para sobrevivência. É humanamente inconcebível aceitar que crianças não tenham condições físicas de crescimento e que não tenham rendimento escolar, porque estão desnutridas. O pensamento que vem à tona é de que precisamos estar dispostos a enxergar essa situação, que está além de um conceito de cidadania, mas sim de humanidade.
Maputo (Moçambique), 22 de outubro de 2018